6.3.13

A disputa


Já estava quase na hora. Ela tinha que se arrumar, senão ia atrasar tudo, e estragar uma noite que já não prometia muito depois das horas de discussões, vozes altas, respostas atravessadas e soluços.

Começou com água gelada na cara. A pele vermelha de choro dava para resolver com maquiagem, os olhos inchados seriam mais difíceis. Bem, para isso existia a cosmética moderna. Os milagres dos cremes beges, pós rosados e coloridos, lápis pretos, batons vermelhos. 

O resultado final a agradou. A tristeza ficou escondida entre o cabelo cuidadosamente desarrumado, o rosto maquiado sem traços de lágrimas, o vestido caro e o salto alto.

O caminho até a festa foi silencioso, para evitar que a briga retornasse. Chegando lá, os amigos, a bebida, o som alto e a necessidade de manter as aparências fariam com que ela se divertisse, com certeza.

Bastaram alguns olás-querida e dois drinks bebidos um pouco rápido demais para uma festa que mal havia começado (o que gerou um olhar torto dele à distância, que foi até recebido de bom grado, nossa, lembrou que eu existo), para ela rir das piadas sem graça. Juntou-se às amigas, deixou-o discutindo qualquer coisa com os outros maridos.

Apenas quando se separou das meninas para buscar a terceira bebida que notou o olhar do estranho do outro lado do balcão. Era uma festa aberta, afinal, bastava pagar para entrar, beber, ouvir o dj, ver gente. 

Ele tinha a cabeça raspada, usava uma camisa branca bem ajustada, jeans claro, a pele era cor de caramelo.Estava a observando, de uns 10 metros de distância. O balcão estava vazio, o som ainda baixo. E o estranho estava diminuindo lentamente a distância, olhando para ela de um jeito amistoso, ainda que discreto, como se avaliasse um eventual campo minado.

Ele não me viu chegar acompanhada, pensou. Pudera, assim que chegaram ali cada um foi para o seu lado. O máximo de reação que teve dele foi a cara feia, lá do meio do círculo de discussão sobre os novos craques do Brasileirão.

O careca estava cada vez mais perto, e ela não sabia bem o que fazer. A bebida ainda não havia chegado. Não havia motivo para sair dali, ninguém estava fazendo nada de mais. Foi aí que sentiu um leve toque rápido nas suas costas quase nuas.

O marido havia se materializado à sua esquerda, mas além do toque, nada parecia indicar que não fossem apenas um homem e uma mulher desconhecidos lado a lado esperando por um drink no bar. Seu olhar fitava um alvo além dela: o estranho de camisa branca.

A cada passo do estranho, seu marido chegava mais perto. Ela estava ficada à frente, deusdocéu, é o bartender mais lerdo do mundo. Respirou fundo e as mão desceram para sua cintura. O toque era avaliação de terreno, vamos ver se ele vai ter coragem.

O Don Juan finalmente notou o concorrente. Desafiador, deu um passo à frente, e nesse momento o homem que julgava amar apareceu: envolveu o braço em sua cintura, e a segurou junto ao corpo. É minha. Vai encarar?

Derrotado, o careca de pele cor de caramelo parou onde estava, acenou ao bartender mais lerdo do mundo e pediu uma cerveja que chegou rapidinho. Ainda um pouco atordoada, ela olhou para o balcão e viu sua bebida ali, suada, com o gelo estalando.

Pegaram seus drinks e se juntaram aos amigos. O mão do marido não deixou sua cintura pelo resto da noite, com afagos no cabelo e sorrisos orgulhosos.

De volta ao apartamento, ela se demorou mais do que o costume no banheiro, tirando a maquiagem, escovando o cabelo, fingindo que colocava a camisola. Quando saiu, ele já dormia, com um ronco bêbado.

Estava quase amanhecendo quando finalmente achou sua certidão de casamento esquecida em uma gaveta. O papel ficou ali, rasgado em quatro pedaços em cima da mesa de jantar, enquanto ela saía e fechava a porta da gaiola.

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