Mais lavoisier
Esse aqui saiu na Bravo! de junho de 2006. O site novo tá bem bacana, mas não tem arquivo de edições passadas e eu tou super nessa fase de recuperar meus textos perdidos e largados por aí e colocá-los aqui. Esse, então, é praticamente um post daqui, então vale o resgate.
Primeira Fila
Uma Tarde Descobrindo..."Os ovários de Madame Bovary"
O que fez da personagem de Flaubert uma adúltera? Darwin explica
Dá uma bela conversa de mesa de bar. Por que Otelo era tão ciumento? Haveria injustiça contra as madrastas de contos de fadas? Faltou vergonha na cara de Madame Bovary? Por que a heroína sempre fica com o mocinho no final? Esqueça a teoria literária. Esqueça também a psicologia. A resposta para todos os clichês da literatura está, adivinhe só, na genética.
Essa é a premissa de "Os Ovários de Madame Bovaryd, de David e Anelle Barash, lançado pela Relume Dumará. Nele, os autores, pai psicólogo e filha bióloga, unem crítica literária à teoria da evolução das espécies, segundo a qual agimos de determinada maneira porque nossos genes querem assim (afinal, esta seria a melhor estratégia para perpetuá-los). Eis o aviso dos evolucionistas: estamos todos geneticamente programados para fazer o que fazemos e como fazemos.
Tem seu sentido, quando explicado desse jeito. Os clássicos são os clássicos justamente porque eles ressoam no comportamento humano. Otelo não foi o primeiro assassino passional, muitas mulheres casadas fugiram com seus amantes antes de Helena de Tróia e famílias disfuncionais existem há tempos antes dos Corleone. É justamente essa verossimilhança que os mantêm nas estantes, segundo os Barash.
Comecemos por Otelo, o exemplo mais bem-acabado que os autores fornecem. O ciúme sexual masculino, em todas as suas variações, deriva do fato de que um homem não tem controle sobre a origem de sua prole. Uma mulher sempre sabe que o bebê é seu. Para um homem, assumir um filho será sempre um ato de fé.
O resto do livro se desenrola da mesma maneira. As heroínas de Jane Austen mostram o processo da busca da fêmea pelo pai de seus filhotes. Elas engravidam, nutrem o bebê com seu próprio corpo antes e depois do parto, o investimento é alto. Por isso, querem alguém que dê meios de sustentar os filhotes. Abram alas para o Senhor Darcy, de Orgulho e Preconceito. E se o marido desaponta, por qualquer motivo, entram em cena Madame Bovary e seus ovários. Com outra adúltera clássica, Anna Karenina, se explica a tendência feminina em se atrair pelo bonitão: um homem atraente gera filhos atraentes que por sua vez também terão sucesso com as mulheres, e assim os genes são empurrados para a frente.
E continua: Mario Puzo ilustrou com O Poderoso Chefão o princípio biológico por trás do nepotismo: se é para ajudar alguém, que ele ou ela tenha algum DNA em comum comigo. Madrastas malvadas? Cuidar dos filhos (e dos genes) dos outros é um trabalho que não se justifica do ponto de vista evolutivo — daí, digamos, a má vontade.
O problema está em como os Barash exemplificam suas teorias. Além de escolherem a dedo os personagens e obras que convenientemente mais se ajustam à suas teses (não deve ser à toa que a literatura realista do século 19 torna-se tão recorrente), a comprovação científica vem em boa parte da observação do comportamento animal, não humano. Elefantes-marinhos, melros, chimpanzés, peixes, pombos, toda uma fauna. A mistura fica, no fim, um pouco indigesta. Não foi um elefante-marinho quem escreveu Madame Bovary, mas Gustave Flaubert.
O momento em que o Homo sapiens se tornou o ser humano é o do surgimento do pensamento abstrato, da imaginação. Pinturas nas cavernas, superstições, histórias contadas de pai para filho. É a partir da experiência do homem que se cria a grande literatura, e se ela acontece em parte por causa de comportamentos instintivos, touché. Mas é justamente a capacidade de fazer arte que nos difere do resto dos animais, e isso não pode ser ignorado. Sem abordar esse paradoxo, o livro perde um pouco de sua força. Mas ainda rende uma ótima conversa de mesa de bar.
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